sexta-feira, 25 de julho de 2008

Os textos de Miguel Somsen

Este jornalista tem sentido de humor muito apurado. A crónica de hoje publicada no jornal Metro é simplesmente esplêndida!

Texto de Miguel Somsen, publicado no jornal Metro de 25 de Julho de 2008:

Espaço

É conhecida a dificuldade que os recém-nascidos têm em gerir a abundância de espaço do mundo real proporcionada pela imensidão do seu berço, depois de nove meses circunscritos a um T0 arrendado ao ventre da mãe. Por isso, sugerem os pediatras, os bebés devem dormir aconchegados a “paredes psicológicas”, sejam elas rolos de cobertores ou pequenas almofadas que possam edificar as primeiras fronteiras do seu espaço vital (recorrendo à memória “in utero”). Com os adultos mal crescidos como eu, é o contrário: eu preciso de muito espaço. Espaço para cima, com tecto trabalhado, espaço para a frente, com vista de rio, e espaço para os lados, para espreguiçar sem acotovelar (se empurrar para debaixo do comboio, paciência). As minhas “paredes psicológicas” serão mais do género Mosteiro dos Jerónimos que sanitários dos Armazéns do Chiado. No Verão, quero uma praia só para mim, nem que tenha de afugentar a vizinhança!

Estou oficialmente de férias, numa casita com espaço e acesso rápido ao mar, em Cacela Velha, no Algarve (escusam de enviar paparazzi, estarei irreconhecível, sem óculos escuros). É o primeiro Verão que passo com a minha filha de nove meses incompletos, a primeira areia nos seus pés, o cobertor molhado das marés, a película de sal nas pálpebras e a poesia pimba de um pai à procura de paz, sossego e espaço. A menina não pede muito, mas os adultos precisam do espaço possível e imaginável. Ora, enquanto o imaginável não passar da nossa imaginação, vamo-nos contentando com o possível — o Algarve. O Algarve está dividido em Sotavento (Faro-Vila Real Sto António), Barlavento (Faro-Lagos) e Sagres (o chamado Só Vento). Estive duas vezes em Sagres e adorei, mas o vento é traiçoeiro: um homem vai dar um mergulho e quando regressa à toalha descobre que a praia já não existe.

Há seis anos, encontrei uma praia só para mim em Cacela Velha. Hoje, o areal tem cerca de vinte pessoas, uma brutalidade. É preciso eliminá-los já. Por isso, antes de levar a família, aventurei-me sozinho. É sabido que, mesmo numa praia semi-deserta, um homem sozinho de óculos escuros causa sempre algum embaraço. “Ele traz um livro, será gay?”. Se eu tivesse levado uns binóculos, seria “voyeur” ou apenas ornitólogo? As pessoas não fazem perguntas, agem com base no estereótipo em voga. E o estereótipo em voga é que um indivíduo suspeito causa má fama ao turismo local. É um risco que corro, talvez amanhã o meu opróbrio tenha servido para esvaziar a praia. Isso ou está garantida uma diária nos calabouços de Vila Real de Sto. António. Tudo bem, desde que não tenha de partilhar espaço com ninguém.

2 comentários:

Carlos Faria disse...

pois, tal como referi no meu blog, eu continuo a ter um porto quase só para mim... mas também é verdade que me considero sortudo! Mas o texto está mesmo divertido.

Anónimo disse...

mesmo ao jeito do diogo tomas, remember??