Os dilemas provocados pela crise orçamental
A Europa entre a austeridade e a renegociação da dívida soberana
Por Nuno Teles (publicado no jornal Público)
Nas últimas duas semanas, por coincidência, dois assuntos dominaram as páginas de economia dos jornais: a aprovação do Orçamento do Estado e a crescente dificuldade de financiamento do Estado português nos mercados de capitais. Não existe um nexo de causalidade necessário entre os dois temas, mas a sua relação é inescapável. Depois da crise em torno da dívida pública dos países do Sul da Europa em Maio, o Governo português comprometeu-se com um programa de estabilidade e crescimento, com o apoio político do PSD, que aponta para um duro caminho de austeridade (só ultrapassado, nas suas previsões draconianas, pelo plano grego). Assim, mesmo sem conhecer ainda o Orçamento, já sabemos o que nos espera: o Governo prevê uma diminuição da despesa pública em 1,3% do PIB em 2011, seguida, em 2012, por uma nova redução em 1,4% - as quais, a par do aumento dos impostos, permitiriam almejar os objectivos de contenção do défice em 3% do PIB e diminuição da dívida pública. Os cortes são, e terão de ser, cegos: na despesa social, no investimento público, nos salários, etc.
As imposições externas, somadas ao estranho quase-consenso público nacional, tornam este programa económico uma inevitabilidade, que se reflectirá certamente na aprovação do próximo Orçamento. Porém, o mais recente relatório do RMF (Research on Money and Finance), coordenado por Costas Lapavitsas, aponta para a insustentabilidade desta trajectória e fornece algumas pistas para a sua superação.
O problema do crescente endividamento externo português (213% do PIB), juntamente com as trajectórias paralelas da Grécia e da Espanha, deveu-se à sistemática perda de competitividade destes países face às maiores economias europeias, no quadro de uma moeda única cuja política é determinada por estas últimas. No contexto de um Banco Central Europeu obcecado com o combate à inflação em detrimento do crescimento, de um pacto de estabilidade e crescimento que impede qualquer esforço público concertado de reconversão das economias e de ausência de mecanismos de redistribuição europeia promotores da coesão, os países com economias mais robustas, como a Alemanha - direccionadas para o mercado externo, com taxas de inflação mais baixas e uma força de trabalho disposta, por razões várias, à perda continuada de poder de compra -, ganharam competitividade em relação às economias periféricas. O resultado foi o crescente endividamento externo de economias como a portuguesa - endividamento esse que, ao contrário do que se possa pensar quando se lê a opinião publicada, tem vindo a ser assumido principalmente pelo sector privado (empresas e famílias, sobretudo as primeiras). 85% da dívida total (interna e externa) actual corresponde ao endividamento do sector privado.
No entanto, em face da recente crise financeira e da fragilidade e volatilidade dos mercados financeiros que lhe têm estado associadas, esta situação possui um reverso da medalha. Os bancos europeus encontram-se fortemente expostos à dívida dos países do Sul: 100 mil milhões de euros, no que se refere a Portugal, e 600 mil milhões, no caso de Espanha. Estas valores são quase tão avultados quanto o montante mobilizado pela UE e pelo FMI para a criação do obscuro fundo de estabilização financeiro que foi anunciado em Maio. Mais grave do que isso é o facto de os bancos se encontrarem confrontados com uma enorme dificuldade em recorrer ao financiamento através de depósitos (a diferença entre a Euribor e as taxas oferecidas nos depósitos foi mesmo negativa durante o segundo semestre de 2009) e com um problema de escassez de dólares (saliente na abertura de linhas de crédito por parte da Reserva Federal norte-americana). No caso português, esta fragilidade traduziu-se mesmo na impossibilidade de recurso ao financiamento nos mercados de capitais, estando os bancos portugueses quase limitados aos empréstimos do BCE. O juro baixo cobrado pelo BCE permite à banca portuguesa realizar margens extraordinárias através dos juros cobrados nos créditos que concede. No entanto, os empréstimos do BCE têm um carácter de curto prazo, o que torna os bancos vulneráveis a eventuais mudanças de política.
No contexto de uma austeridade alargada a todo o espaço europeu e de uma economia mundial dominada pela incerteza e pela possibilidade de um nova recessão, as previsões por parte do Governo português de uma retoma apoiada nas exportações que contrabalance os recessivos cortes públicos parecem, no mínimo, inverosímeis. O resultado será, pois, uma nova recessão e um novo aumento do desemprego, sem que os problemas de dívida pública, em termos relativos face ao PIB, se atenuem. Se a actual volatilidade especulativa nos mercados financeiros se mantiver, a perspectiva de uma reestruturação da dívida pública (a variável politicamente mais saliente no endividamento total) parece inevitável. Este processo será liderado pela Grécia. No entanto, graças ao contágio dos mercados financeiros, depressa afectará o nosso país. Vale assim a pena pensar, num momento em que os países do Sul detêm o poder de negociação sobre os bancos do Norte, em iniciar um processo de reescalonamento transparente da dívida. Este começaria por uma auditoria à dívida pública, seguida de uma renegociação que imponha condições favoráveis aos países devedores. A perspectiva da desagregação da zona euro é, neste cenário, provável. Se tal cenário acarreta riscos, a combinação da desvalorização cambial com a instituição de controlos de capitais e com o controlo público do sistema financeiro poderia permitir uma política industrial capaz de nos tirar da crise que se arrasta há mais de uma década. O cenário contrário será o de uma reestruturação da dívida liderada pelos credores, com as mesmas receitas de sempre: mais austeridade, mais recessão e mais desemprego. Até quando?
Economista, membro do grupo de investigação Research on Money and Finance (www.researchonmoneyandfinance.org)
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